Anualmente, milhares de armas e munições ilegais são apreendidas em todo o Brasil. Grande parte desse arsenal é oriundo de desvios das forças de segurança e, por vezes, da displicência ou cumplicidade de agentes públicos. A consequência é o incremento do poder de fogo dos bandidos – sobretudo daqueles que pertencem ao crime organizado –, com grande prejuízo da população. Nos últimos tempos, medidas tomadas pelo governo federal também facilitaram a posse e o extravio de material bélico.
Para se ter uma ideia do quadro, estudo realizado pelo Instituto Sou da Paz, via Lei de Acesso à Informação (LAI), constatou que 323 armas e mais de 18 mil munições foram desviadas das forças federais entre 2015 e 2020. Segundo o relatório “Menos armas, mais jovens: violência armada, violência policial e comércio de armas”, produzido pela mesma entidade, somente 22% de todas as munições existentes no país possuem alguma identificação para rastreamento de origem e proprietário.
Além disso, foram baixados vários decretos que facilitaram as condições de venda de armas e munições em grande escala “sem que fossem criados, ao mesmo tempo, mecanismos rígidos de controle para a aquisição dos artefatos” – aponta a criminalista Cida Silva, sócia do escritório Campos e Antonioli Advogados Associados.
Dentre as iniciativas do Executivo, constam a revogação de portarias voltadas ao aperfeiçoamento na marcação e na rastreabilidade de armas e munições e o corte no orçamento do Exército relativo à fiscalização de CAC´s (Colecionador, Atirador e Caçador), de fábricas e de lojas de munição, afora o comércio de explosivos. Entre 2018 e 2021, os recursos reservados a essa finalidade sofreram uma grande redução – de R$ 3,6 mi para R$ 1,7 mi.
“Tivemos a liberação de registros como CAC disponibilizados para cidadãos cujas atividades não guardam qualquer relação com tais práticas”, explica a advogada, para quem “aconteceu o previsível”: o aumento substantivo no número de artefatos vendidos “sem um controle à altura, capaz de garantir os direitos desse grupo sem expor a população ao aumento da criminalidade armada”.
De acordo com Cida Silva, a flexibilização do acesso aos dispositivos de fogo contribuiu para reforçar o poder destrutivo de organizações criminosas.
Outra questão preocupante é a falta de diálogo entre o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), mantido pela Polícia Federal, e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército. “As ferramentas não se comunicam. Isso quer dizer que a mesma arma pode estar legalizada em um e sequer constar do outro”, sublinha a criminalista.
“Criou-se uma ‘cifra negra’ no que diz respeito ao efetivo armamento da população. Não há como fazer uma contagem dos detentores de armas/munição com total segurança, pois cada sistema apresentará um resultado, não necessariamente iguais ou convergentes”, complementa Cida.
O mais adequado, para a advogada, seria a criação de um mecanismo único de fiscalização que permitisse ao Exército e à Polícia Federal um “controle unificado” das armas comercializadas. “O controle rígido e centralizado em nada prejudicaria o cidadão de bem que busca armas para sua proteção e de sua família. No entanto, com certeza, dificultaria a vida dos novos cangaceiros urbanos.”
Investigações policiais já apontaram que armamentos e munições adquiridos por meios irregulares costumam ser destinados a membros de quadrilhas. “Ou seja, a falta de controle beneficia, em detrimento da segurança da população, principalmente grupos de criminosos com características específicas”, finaliza.
Imbróglio jurídico
Em setembro de 2021, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a portaria 62/2020, editada em abril do ano anterior pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, para revogar normas que aumentavam o controle e rastreamento de armas e munições no país.
Um ano depois, foi a vez do ministro Edson Fachin, também do STF, conceder liminares para restringir os efeitos de decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro que facilitavam a compra de armas de fogo e de munições, além da posse de armamento. O argumento foi o risco de violência política, que, nas palavras do magistrado, “torna de extrema e excepcional urgência a necessidade de se conceder o provimento cautelar”.
60 toneladas de munição
Um dos casos emblemáticos recentes aconteceu no Maranhão, quando uma organização criminosa, liderada por irmãos gêmeos, foi acusada de despejar cerca de 60 toneladas de munição no mercado ilegal. De acordo com a investigação da Polícia Civil e da Promotoria do Maranhão, a ação foi resultado de uma falha na fiscalização das informações introduzidas no Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições do Exército (Sicovem).
Os criminosos inseriram, por mais de um ano, dados falsos no sistema. A fraude só foi detectada quando as autoridades policiais solicitaram informações ao Exército. A prática consistia no uso de um mesmo número de Craf (Certificado de Registro de Arma de Fogo) em diferentes vendas de munições, associadas a uma variedade de nomes, provavelmente falsos.
Sicovem
O Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições do Exército foi implementado em 2007 em observância ao Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) e é utilizado pelo Exército no monitoramento da venda de munições, abrangendo tanto a transferência do material do fabricante para o comerciante quanto deste para o consumidor final. O sistema pertence à Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), que detém o monopólio da venda de munições de uso não militar em território nacional.
Sinarm
O Sistema Nacional de Armas foi criado também por força do Estatuto do Desarmamento, mas é operado pela Polícia Federal, com circunscrição em todo o território nacional, sendo responsável pelo controle de armas de fogo em poder da população.
Sigma
O Sistema de Gerenciamento Militar de Armas é encarregado da atualização do cadastro das armas registradas no Exército Brasileiro. Na teoria, as armas registradas no Sigma são para fim esportivo e caça – os já conhecidos CAC’s.
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