Racismo laboral: apesar de crime, injúria racial ainda é corriqueira em ambientes de trabalho

injúria racial

Desde 2004, prática de injúria racial já motivou mais de 22 mil processos na Justiça do Trabalho

Injúria racial no ambiente de trabalho

 

A injúria racial no ambiente de trabalho é uma prática muitas vezes naturalizada como trivial, apesar de suas nefastas consequências no mercado: além da disparidade salarial, a população negra tem menores possibilidades de ascensão profissional para cargos de gestão – em empresas dos mais diversos segmentos –, sem contar a maior desocupação enfrentada por pretos e pardos. 

Estudo realizado pela empresa de jurimetria Datalawyer e publicado pela Folha de S.Paulo indica que vem ocorrendo uma escalada anual no volume de processos relacionados a acusações de injúria racial contra trabalhadores.

Conforme o levantamento, desde 2012, o racismo laboral gerou ao menos 22.511 processos na Justiça do Trabalho. Em 2018, foram 1.291 ações vinculadas a racismo ou injúria racial. Já em 2021, apenas no primeiro semestre, o total de processos saltou para 1.793. No mesmo período de 2022, esse número atingiu 2.042 casos – um crescimento absolutamente vertiginoso. 

O estado de São Paulo, de acordo com a pesquisa, possui o maior número de processos ativos atualmente: 3.754 ações. Em segundo lugar aparece o Rio Grande do Sul, com 1.238 casos citando racismo, preconceito racial, discriminação racial e injúria racial nos pedidos iniciais.

Múltiplas faces do racismo laboral

 

Além dos assédios mais nítidos – que se expressam através de comentários, constrangimentos e até xingamentos –, o racismo também se apresenta na falta de diversidade. 

A título de exemplo, há o caso de uma grande rede de laboratórios que foi condenada em 2020 a indenizar uma funcionária em R$ 10 mil por não contemplar pessoas negras em seu guia de treinamento. O manual em questão definia padrões de vestimenta, maquiagem e penteado, mas desconsiderava as características individuais das pessoas de pele preta e cabelos crespos. 

Há, ainda, episódios que chegaram a situações extremas, em que a prática assumiu a forma de violência física e até homicídio, como ocorreu no triste caso do jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, que foi torturado e assassinado em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O motivo, torpe, foi a exigência do pagamento atrasado de seu trabalho, no valor de R$ 200.

Recentemente, também ganhou repercussão o caso de Madalena Silva, de 62 anos, que trabalhou por 54 anos sem receber salários, sendo constantemente maltratada pela família que a “empregava” em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador. Ao ser entrevistada, Madalena chegou a chorar ao tocar a mão da repórter de uma emissora de televisão, tantos foram os traumas experienciados. “Fico com receio de pegar na sua mão branca”, disse.

Respostas da Justiça

 

Em diversas decisões, a Justiça do Trabalho vem buscando coibir a prática da descriminação ou racismo no ambiente de trabalho. No caso de Madalena Silva, a juíza do trabalho Vivianne Tanure Mateus acatou pedido do Ministério Público do Trabalho da Bahia e determinou o bloqueio de R$ 1 milhão em bens da família acusada de manter a idosa de 62 anos em situação análoga à de escravo. A ação ainda não foi julgada em definitivo, mas a magistrada estabeleceu que os responsáveis paguem à vítima um salário-mínimo mensal até a resolução definitiva da demanda. 

Em outro julgamento recente, a juíza do trabalho Dalva Macedo condenou a inspetora de uma instituição de ensino do Rio de Janeiro a pagar R$ 30 mil de indenização por danos morais a uma funcionária – então, jovem aprendiz – que, enquanto estava no banheiro, foi advertida a voltar com o “volume do cabelo mais baixo”. Rindo do próprio aviso, a inspetora afirmou que a ordem “para pentear o cabelo” havia partido de um superior.   

Para a juíza do trabalho, as testemunhas ouvidas e o relato da funcionária comprovaram o intuito da acusada de “constranger a reclamante, menor aprendiz, com ofensa preconceituosa e de conotação racista”. Escreveu a juíza: “não há dúvidas de que a empregada, que é abordada por um motivo desvinculado do trabalho, vê-se acuada no ambiente de trabalho, apreensiva e com medo de sofrer as represálias do empregador. Ademais, a conotação desrespeitosa ligada a uma característica afrodescendente agrava a situação da ré”.

Já no episódio que resultou no assassinato de Moïse, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou com ação pedindo indenização de R$17,2 milhões contra os acusados e em favor da família do congolês. O processo diz respeito às condições de trabalho impostas ao imigrante antes de ter sua vida ceifada. “A denúncia aponta para o possível trabalho sem o reconhecimento de direitos trabalhistas, podendo configurar, inclusive, trabalho em condições análogas à de escravo, na modalidade trabalho forçado, de xenofobia e de racismo”, sustentou o MPT, na época.

Constituição Federal

 

A Constituição Federal de 1988 manifesta a repulsa ao racismo em duas passagens distintas. No artigo 4º, que estabelece os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, figura no inciso VIII o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”. 

Já o artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, coloca a “prática do racismo”, no inciso XLII, como “crime inafiançável e imprescritível”, que se sujeita “à pena de reclusão”. 

Antes disso, porém, em seu artigo 3º, a Carta Magna já impõe como “objetivo fundamental” da República, no inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 

Estatuto da Igualdade Racial

 

Sancionado após uma tramitação que durou quase uma década, o Estatuto da Igualdade Racial – instituído, finalmente, na forma da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 – visa “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades”, além de promover a “defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos” e o “combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”.

O texto estabelece o direito da população negra de participar, em condições de igualdade de oportunidade, da vida econômica, social, política e cultural do país – por meio de políticas públicas de desenvolvimento e da adoção de medidas e ações afirmativas. 

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