Como a execução de multas penais afeta a população carcerária

multas penais

A vinculação da quitação de multas penais à extinção da pena está impactando desproporcionalmente indivíduos vulneráveis, pois cria dificuldades para sua reintegração à sociedade

Na paisagem complexa do sistema prisional brasileiro, existe um problema emergente, que está gerando um impacto desproporcional sobre indivíduos que buscam se reintegrar à sociedade após a detenção: a dívida com a Justiça decorrente de multas penais. Esse desafio, que acrescenta um fardo adicional sobre aqueles que já enfrentam obstáculos significativos na ressocialização, está enraizado em uma interpretação recente do Código Penal, que tem como origem a tentativa de combater crimes de colarinho branco. Infelizmente, a implementação dessa medida tem consequências inesperadas e prejudiciais, especialmente para os mais vulneráveis na sociedade – e levanta questões importantes sobre justiça, equidade e a finalidade do sistema prisional.

Crimes sujeitos à multas penais

A maioria dos crimes, excluindo-se os de natureza sexual ou contra a vida, estão sujeitos à multa penal, conforme o artigo 51 do Código Penal. A partir de 2019, a não quitação desta multa impede a extinção da pena, mesmo após o cumprimento integral do tempo de detenção. Sanções adicionais incluem a suspensão de direitos políticos, bem como a possibilidade de bloqueio financeiro ou penhora de bens.

Embora essa penalidade estivesse prevista no Código Penal desde 1940, somente após o julgamento do escândalo do Mensalão, em 2007, foi que se percebeu uma mudança significativa na aplicação da medida. Até então, o Estado se abstinha de executar a maior parte dessas cobranças, com a justificativa de que os custos processuais superavam o montante a ser recuperado.

No ano de 2018, durante a análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.150, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso estipulou que a multa possui natureza penal – e que sua execução caberia ao Ministério Público. Tal entendimento foi incorporado ao chamado “Pacote Anticrime”, projeto encaminhado ao Congresso Nacional na gestão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, e que resultou na Lei nº 13.964/19.

Impacto Discrepante

Ainda que a medida tenha sido concebida para combater crimes de colarinho branco, envolvendo grandes patrimônios ou desvios de milhões, ela acabou por afetar de forma mais acentuada os indivíduos mais vulneráveis. As dívidas imputadas a essas pessoas decorrem de uma sanção estipulada na sentença: a pena de multa. Somente na cidade de São Paulo, dos 50 mil casos de cobranças pendentes, mais de 20 mil correspondem a valores entre R$ 200,01 e R$ 500.

No Estado, que é o mais populoso do país e possui a maior população carcerária (cerca de 197 mil detentos), houve um incremento notável na execução de multas. Segundo dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) à Agência Pública, até 6 de janeiro de 2020, havia somente 6 registros em andamento, número que saltou para 208 mil em 31 de março de 2023. Apenas na capital, existem mais de 50.000 ações referentes a valores pendentes.

Essa cobrança tem sido considerada desproporcional por especialistas. O presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e advogado criminalista Guilherme Ziliani, em entrevista à Agência Pública, descreveu como excessivo o impacto gerado na população mais vulnerável. Ele questiona como um jovem de 19 anos, detido em flagrante com 50 gramas de cocaína e R$ 60 em espécie, conseguiria pagar a multa mínima estipulada em R$ 22 mil após cumprir sua pena e conseguir um emprego – ao mesmo tempo em que precisaria garantir a própria subsistência.

Segundo os dados, a aplicação da pena de multa em São Paulo aumentou depois que a 1ª Vara de Execuções Criminais, composta por nove servidores e um juiz, assumiu a competência. O Estado tem sido apontado por especialistas como um tipo de “laboratório” desse novo entendimento.

Diante desse cenário, juristas na área criminal expressaram preocupação, o que motivou entidades e organizações da sociedade civil a explorar formas de atuação nos casos. O IDDD, em 2022, elaborou um documento de apoio contendo teses institucionais e argumentos jurídicos sobre o tema, além de criar um mutirão de assistência para ex-detentos que enfrentam dificuldades para quitar a dívida.

Perfil dos afetados

Somente entre agosto e dezembro de 2022, o IDDD atuou em 251 casos, e, a partir dos dados coletados pelos advogados durante os atendimentos, traçou o perfil socioeconômico dos assistidos: 80% se identificaram como negros; 72% disseram ter filhos ou dependentes, sendo que mais de um terço afirmou ter três filhos ou mais. Cerca de um quinto se declarou em situação de rua; 72,1% afirmaram ganhar menos de um salário mínimo por mês; 36,3% não concluíram o ensino fundamental, 72,5% não finalizaram o ensino médio e mais da metade está desempregada. Entre os empregados, 82,4% não possuem registro formal de trabalho.

 

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