Quem costuma acompanhar o noticiário policial sabe muito bem que grande parte dos casos de violência contra a mulher acontece em ambientes domésticos, afinal, a proximidade acaba por viabilizar conflitos que, em situações de distanciamento, poderiam ser evitados. Na maioria das vezes, são os próprios companheiros das vítimas os responsáveis pelos delitos, mas há também incontáveis relatos de abusos praticados por pais e irmãos.
Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU), publicada recentemente, veio confirmar o que já era uma perspectiva assustadora: muitas mulheres vivem em circunstâncias de ameaça dentro das próprias casas. Em todo o mundo, 56% dos feminicídios são cometidos por “parceiros íntimos” e outros familiares das vítimas. Para se ter uma ideia do descompasso, em se tratando de homens, o indicador é cinco vezes menor: apenas 11% dos assassinados morreram pelas mãos de parentes.
Os resultados demonstram que, enquanto os homicídios masculinos ocorrem fora da esfera privada, no caso das mulheres, o local de maior risco é o próprio lar. E o mais grave: na última década, não houve nenhuma redução desse quadro, apesar da adoção de políticas públicas específicas em diversos países.
A estimativa da ONU é a de que, no ano passado, 45 mil mulheres e meninas tenham sido mortas por companheiros ou familiares: em média, mais de cinco vítimas por hora.
De acordo com o relatório, a África é o continente em que o nível de violência perpetrada por parceiros ou familiares é mais elevado proporcionalmente. Em números absolutos, a Ásia assume a liderança. O estudo aponta que em 40% dos casos de mulheres assassinadas em 2021 não havia informações suficientes nos boletins de ocorrência para que o crime pudesse ser qualificado como feminicídio.
Situação do Brasil
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) também trouxe dados sobre o tema no 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2022. Foram registradas mais de 230 agressões contra mulheres por violência doméstica no ano passado – aumento de 0,6% em relação ao período anterior.
O total de ameaças contabilizadas ultrapassou 597 mil: incremento de 3,3%. Houve cerca de 619 mil chamadas ao 190 – o que equivale a um crescimento de 4%. Já o montante de medidas protetivas de urgência concedidas avançou 136,6%, para algo em torno de 370 mil.
Machismo como causa
Uma das razões para o elevado índice de feminicídio em diversas nações é o machismo ainda entranhado na sociedade, que reforça os estereótipos de gênero, intensificando o preconceito e a desigualdade. Um quadro lamentável, que só pode ser superada com o envolvimento do governo e da sociedade civil.
Outro problema é a disparidade no acesso a cargos e funções de liderança, seja no setor público ou privado, acompanhada por uma menor presença das mulheres nos espaços de poder – o que contribui para a impunidade dos infratores, os quais se sentem estimulados a persistir nos crimes. Para se ter uma ideia do problema, muitas sociedades foram tolerantes por bastante tempo com práticas discriminatórias. No Brasil, a tese da legítima defesa da honra só foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado, depois de viabilizar a liberdade de incontáveis assassinos de mulheres.
Escalada de violências
Na visão de especialistas, os crimes de feminicídio sucedem, normalmente, no momento ápice de uma escalada de violações – que começa por xingamentos e ameaças e passa por agressões físicas – antes de chegar ao desfecho letal. Por esse motivo, o Congresso Nacional aprovou, nos últimos anos, marcos jurídicos que buscam evitar essa jornada de progressão da violência.
Uma delas é a Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021, que acrescenta o art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de perseguição – também conhecido como “stalking”, devido à fama que adquiriu na internet.
O texto define a prática como “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.
A pena prevista é a reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, podendo ser aumentada pela metade se o crime for cometido contra mulher – “por razões da condição de sexo feminino”.
Podemos mencionar, ainda, nesse contexto, a Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021, que cria o tipo penal da violência psicológica contra a mulher – definida como “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”.
A mesma regra modificou a Lei Maria da Penha para que – verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes – o agressor possa ser imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida.
Outra providência da lei é a instituição do programa de cooperação “Sinal Vermelho Contra a Mulher”, derivado de uma campanha de mesmo nome do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A iniciativa prevê que mulheres possam pedir socorro em estabelecimentos de acesso público com um X vermelho marcado na palma da mão.
Feminicídios em 2021 por continente
Números absolutos:
– Ásia: 17,8 mil
– África:17,2 mil
– Américas: 7.5 mil
– Europa: 2.5 mil
– Oceania: 300
Taxa para cada 100 mil habitantes:
– África: 2,5
– Américas: 1,4
– Oceania: 1,2 a
– Ásia: 0,8
– Europa: 0,6