A sócia Carolina Carvalho de Oliveira falou ao portal Jota sobre o crime de violência psicológica contra a mulher, tipificado em 2021. Em sua avaliação, a criação do tipo penal pela Lei 14.188/2021 qualificou a legislação para punir práticas contra os princípios que norteiam a Lei Maria da Penha desde sua criação, em 2006.
Homens que não aceitam o fim da relação: um padrão em casos de stalking e violência psicológica
“Se não for minha, não vai ser de mais ninguém, o papel do divórcio não vale nada, você é minha mulher. (…) Não me trai não, se me trair você vai ver, você é minha mulher, você não tem livre arbítrio.” O tom das ameaças é representativo do que pode ser encontrado em ações judiciais de stalking e de violência psicológica. Nelas, notadamente homens que não aceitam o término do relacionamento tentam reiteradamente entrar em contato com a mulher por diversos meios — atravessando sua esfera de privacidade e causando-lhe danos emocionais.
Stalking é o nome derivado da língua inglesa associado à prática de perseguição. O ato tornou-se tipo penal em março de 2021, por força da Lei 14.132/2021. O crime consiste na perseguição reiterada a ponto de restringir a liberdade ou lesar a reputação da vítima. O Brasil registrou, no ano passado, cerca de 27,7 mil denúncias de stalking, o que representa uma taxa 35,8 por 100 mil mulheres, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgados nesta terça-feira (28/6).
A legislação não estabelece que a conduta deve ser contra uma vítima de violência doméstica para ser passível de punição, mas os exemplos encontrados nos tribunais têm essa característica.
É o caso da mulher que, além de ouvir que não tem livre arbítrio, foi ameaçada de morte pelo ex-marido, de quem se divorciou em razão de seu alcoolismo e agressividade. Ouvida em juízo, ela afirmou que após a separação ele começou a persegui-la em sua casa e em seu local de trabalho, com um canivete na cintura, insistindo para reatarem. Aterrorizada, ela passou a morar na casa da irmã.
O caso foi para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), cuja 9ª Câmara de Direito Criminal manteve por unanimidade a condenação do ex-marido pela contravenção penal de perturbação à tranquilidade. Embora o ilícito tenha sido transformado no crime de perseguição, com recrudescimento de pena, o colegiado decidiu pela aplicação da norma anterior por ser mais benéfica ao acusado.
Segundo Isabela Castro de Castro, presidente da comissão Mulher Advogada da OAB-SP, hoje “o agressor ainda entende, dentro sistema do patriarcado e do machismo, que ele é o dono daquela mulher, que tem o controle dela, mesmo ao final do relacionamento”. A advogada defendeu a criação do novo tipo penal por entender ser mais fácil realizar a caracterização do crime e aplicar a punições mais efetivas, desestimulando a conduta.
Para incorrer no crime de stalking, a prática deve ser reiterada e obsessiva, por qualquer meio, de modo a provocar desconforto e até temor à vítima. Em ação julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), a autoria do crime foi comprovada a parir de:
1 – boletim de ocorrência;
2 – prints da tela do celular com as mensagens de texto e relatório de ligações;
3 – relatório da Patrulha de Prevenção a Violência Doméstica (PPVD);
4 – relatório de medida protetiva de urgência;
5 – prova oral.
No caso em questão, a mulher relatou que manteve um relacionamento com o acusado, sendo que após conseguir um trabalho, ele começou a ter ciúmes, a ameaçá-la e agredi-la física e psicologicamente. O homem foi preso. Quando saiu da cadeia, tornou a ameaçá-la novamente, dizendo que ela “iria pagar por ter colocado ele na cadeia” e que “se ela não for dele, não será de mais ninguém”. Ele a vigiava em casa e a seguia até o trabalho. Ela contou “temer por sua vida”.
A relatora, desembargadora Kárin Emmerich, ressaltou em seu voto que a palavra da vítima em casos no âmbito doméstico e familiar assume especial relevância probatória, quando de acordo com demais provas produzidas. Isso porque, em regra, as situações ocorrem longe de testemunhas, na esfera da convivência íntima e em situação de vulnerabilidade.
O juízo de primeira instância condenou-o pelo crime de perseguição e por descumprir, por cinco vezes, a medida protetiva à pena total de cinco anos e nove meses e meio em regime inicial fechado, além do pagamento de indenização de R$ 10 mil por danos morais. A Corte Revisora manteve a sentença, porém reduziu a pena a um ano e dois meses em regime inicial fechado, seis meses e seis dias de detenção no semiaberto, além de 21 dias-multa, no mínimo legal.
Violência psicológica contra a mulher
O crime de violência psicológica foi instituído pouco tempo depois do de stalking, em julho de 2021, por meio da Lei 14.188/2021, e estabelece que é passível de punição aquele que causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento. Levantamento do FBSP mostrou que no ano passado foram registrados cerca de 8,4 mil boletins de ocorrência para denunciar a prática. No total, isso representa 17,6 casos a cada 100 mil mulheres.
Antes da tipificação penal, tanto do crime de violência quanto de perseguição, vítimas tinham de contar com a interpretação extensiva dos crimes existentes, entre eles a ameaça, a perturbação da tranquilidade e crimes contra a honra que possuem penas mais brandas, segundo explicou a criminalista Carolina Carvalho de Oliveira, sócia do escritório Campos & Antonioli Advogados Associados. A própria Lei Maria da Penha já trazia em seu texto a violência psicológica, mas não havia tipificação penal.
Neste mês, o TJSP negou provimento a um recurso de um homem que, conforme os autos, praticou violência psicológica contra a ex-mulher, com quem teve duas filhas, em razão de desentendimentos sobre a dissolução do relacionamento e a divisão de bens. Ele começou a ameaçá-la dizendo: “Bate de frente que vai saber quem eu sou” e “só espera quando ouvir o barulho do portão”. Ele ainda enviou uma mensagem uma das filhas, direcionada à mãe, declarando sobre a casa e as crianças: “Essa casa filha, eu tenho muita parte nela, a sua mamãe só me roubou, mas pode ficar pra vocês quando a sua mamãe morrer, que não vai demorar muito…”. A menina tinha cinco anos.
Para Carolina Carvalho de Oliveira, o impacto da tipificação penal foi positivo por qualificar a legislação para punir práticas contra os princípios que norteiam a Lei Maria da Penha desde sua criação, em 2006. Essa visão, entretanto, não é um consenso.
Carolina Rangel, defensora pública que atua na Casa da Mulher Brasileira, criticou a criação de novos tipos penais como resposta de segurança pública. De acordo com a defensora, os crimes em contexto de violência doméstica em circunstâncias de relacionamentos mais longos, particularmente o de violência psicológica, não são tão efetivos para oferecer à mulher uma saída daquela situação. Antes de uma resposta criminal, ela necessitaria de oferta de serviços de assistência social e psicológica e empregabilidade.
Mais, a tipificação pode, inclusive, atrapalhar. “A criação de novos tipos penais reforça um certo entendimento jurisprudencial de que a medida só pode ser aplicada se houver um processo criminal em andamento. Isso diminui a capacidade de transformação social da Lei Maria da Penha,” a qual permite que a medida protetiva seja aplicada ainda que o agressor não estivesse sendo acusado.
Rangel disse que esse é o desejo de muitas mulheres as quais querem somente que a violência chegue ao fim, não uma ação penal, porque, em certos casos, o homem é o pai dos filhos ou a mulher não tem vontade de entrar em uma ação penal, mesmo na condição de vítima.
“Vejo situações em que a violência continua, a medida continua sendo necessária e pelo fato de não haver um processo criminal em andamento, que apure um crime, qualquer que seja, a medida é revogada.” E o ciclo da violência recomeça.
Os processos citados na reportagem, na ordem que aparecem, tem os números: 1.0433.21.005071-5/001 (stalking); 1500741-43.2021.8.26.0482 (stalking); 1504087-43.2021.8.26.0048 (violência psicológica contra a mulher).
Matéria do JOTA
Por ARTHUR GUIMARÃES – Repórter em São Paulo. Atua na cobertura política e jurídica do site do JOTA. Estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Libero. Antes, trabalhou no Suno Notícias cobrindo mercado de capitais. Email: arthur.guimaraes@jota.info
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