O Carandiru e o devido processo legal

Carandiru

Desfecho do caso demora em razão de defeitos e virtudes de nosso sistema jurídico

Uma data triste, pelo episódio e, mais ainda, pela revolta diante do que se entende por impunidade. No dia 2 de outubro, o chamado “Massacre do Carandiru” completou 30 anos, data que, novamente, mobilizou a opinião pública pela cobrança de punições. Dois julgamentos já foram anulados e os réus cumprem pena em liberdade. Três décadas à espera de responsabilização sugerem, sim, impunidade, mas precisamos ponderar a complexidade do processo e as garantias aos acusados contempladas em nosso arcabouço jurídico. O sistema de Direito Penal pode às vezes parecer moroso e sem sentido, mas suas garantias existem exatamente para proteger o cidadão da mesma violência arbitrária do Estado contra a qual se revoltam os críticos do episódio.

A tramitação jurídica do caso do Carandiru envolve mais de 70 réus em um processo com centenas de volumes. Os autos já passaram pela Justiça Militar, pela Justiça comum; houve suspensão do processo e várias anulações. Recentemente, o caso chegou ao tribunal do júri, entre 2014 e 2016, dividido em duas ações com diferentes réus. A sentença condenatória de primeira instância foi questionada em recursos no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).

Para o cidadão comum, esse vaivém de volumes, processos, apelações e recursos pode parecer uma burocracia procrastinatória e sem sentido, criada para proteger culpados e produzir impunidade. Mas o aparato de condicionantes e garantias de nosso sistema jurídico tem finalidade e função bem precisas, voltadas à proteção do cidadão comum, dentro do que chamamos devido processo legal. Esse sistema determina, entre outros princípios, que todos devem ter direito a um processo justo e imparcial, e que ninguém será considerado culpado e preso antes de esgotados os recursos legalmente previstos. Ou seja, antes do trânsito em julgado de uma ação.

Trata-se, por certo, de um episódio extremo. Pela sua duração, número de envolvidos, gravidades das condutas sub judice e da contradição comum entre o “clamor por Justiça” da população e o ritmo natural de funcionamento do sistema de direito penal. A exigência de ritos sumários e penas extremas em casos de grande apelo para a mídia e a opinião pública conflita com um sistema cujo objetivo é conciliar duas funções: responsabilizar os autores criminosos e, ao mesmo tempo, proteger o cidadão comum da arbitrariedade do Estado.

Individualização da pena

 

No episódio do Carandiru, um dos principais argumentos da defesa dos policiais é o “princípio da individualização da conduta” – um tema relevante e essencial para o Direito Penal. Sem ele, cidadãos ficariam expostos a acusações arbitrárias e condenações infundadas.

Segundo os advogados dos acusados, não foi adequadamente descrita na peça acusatória e na sentença condenatória a conduta criminosa de cada um dos policiais que abriram fogo contra os detentos dentro do presídio. Na mesma linha, alegam, não houve contextualização das práticas e descrição da motivação de cada uma das ações que levaram à morte 111 presos daquela unidade carcerária. Para a defesa, houve uma descrição “genérica”, imprecisa ou indefinida desses atos.

Não cabe aqui avaliar a procedência do argumento da defesa, mas é importante notar que ele parte de um princípio crucial na história e desenvolvimento do Direito Penal moderno, criado para evitar acusações vagas e sem sentido. Não é razoável acusar penalmente alguém sem que se diga com precisão e clareza os atos pelos quais essa pessoa está sendo processada. Ao longo da história, acusações vagas e infundadas foram instrumento de perseguição e arbitrariedade.

Atuação do Estado X Atuação do indivíduo

 

É fato que o Estado falhou em seu dever de proteger os detentos sob sua custódia. Um sistema prisional decadente e mal gerido, uma força policial mal treinada e despreparada para enfrentar situações de rebelião, uma operação policial organizada às pressas e executada de modo inadequado desencadearam episódios de violência excessiva. Mas essa é uma descrição genérica dos fatos. Há uma série de contextos e nuances a serem levados em conta se o objetivo é atribuir culpas específicas a indivíduos determinados.

A atribuição de culpa penal exige maior precisão e detalhe do que a atribuição de responsabilidade civil. É preciso delimitar o ato concreto e a motivação específica do sujeito no momento em que o ato foi praticado. Por isso é mais difícil atribuir responsabilidade penal a um indivíduo do que fazer alegações genéricas contra uma instituição ou contra o Estado de modo geral. A instituições cabe a responsabilização objetiva, mas a responsabilização penal é via de regra subjetiva, ou seja, pessoal, exigindo a individualização da conduta.

Se o sistema tem como objetivo atribuir culpa penal, há mais argumentos a serem ponderados. Havia no caso da operação policial no Carandiru uma situação de perigo e confronto, a questão da hierarquia militar com agentes atuando no cumprimento de ordens e uma missão, dada pelo Estado, a ser executada por agentes de segurança. Essas ponderações podem não ser elementos suficientes para atenuar a culpa de todos os envolvidos, mas tornam exigível redobrar o cuidado no tratamento das acusações. Justamente esse cuidado é obtido por meio do sistema de garantias assegurado pelo Direito Penal.

Pressões dos dois lados

 

Vale lembrar que temos um sistema pressionado pela sociedade por dois lados. Por um lado, parte dos cidadãos vê no “massacre” um ato bárbaro, digno de punição exemplar. Outra parte da população acredita que os criminosos e condenados devem ser tratados com o máximo rigor a fim de garantir a pacificação da sociedade. Para esses indivíduos, a atuação brutal dos agentes de segurança na repressão da rebelião do Carandiru foi uma ação legítima.

Não custa lembrar que, em agosto deste ano, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.821/2021, que concede anistia aos policiais processados pelo “massacre do Carandiru”. A fundamentação do projeto é exatamente a ideia de que não é possível individualizar a pena para determinar se houve excesso doloso ou culposo por parte dos policiais, e não há respaldo constitucional para condenação por uma conduta “incerta e indefinida”.

Solução perigosa para um problema complexo

 

O caso do Carandiru expõe uma situação complexa, com várias nuances e variados pontos de vista a serem ponderados. É simplista atribuir ao caso uma solução evidente e definitiva. Exigir uma punição exemplar e sumária dos acusados é uma solução perigosa e inócua para um problema complexo.

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