Criminalista Douglas Antonioli explica o conceito de “gaslighting” e como a prática pode ser enquadrada em diversos crimes previstos na legislação brasileira
“Palavra do ano” eleita pelo dicionário Merriam-Webster devido ao elevado crescimento da taxa de buscas em 2022 – 1.714% –, o termo “gaslighting” tem sido cada vez mais incorporado pela imprensa para denotar uma realidade infelizmente muito presente, tanto no Brasil como lá fora.
“Gaslighting” é definido como a manipulação psicológica, através de comentários e ações, que visa a fazer com que determinada pessoa passe a questionar a própria sanidade – com profundo sofrimento à vítima e prejuízos principalmente às suas relações interpessoais.
Todos estão sujeitos a sofrer “gaslighting”, mas os alvos preferenciais são as mulheres. Os casos se verificam na maior parte das vezes em relacionamentos românticos, mas acontece também entre familiares e amigos e no ambiente de trabalho.
Interessante notar que as pessoas que cometem “gaslighting” são, via de regra, próximas da vítima – e, para obter alguma vantagem indevida, lançam mão de diversas práticas, como menosprezo e ridicularização do outro, muitas vezes por meio de ironia ou sarcasmo.
É fundamental que a sociedade aproveite este momento de destaque e notoriedade do problema para incentivar medidas efetivas para o seu enfrentamento. O primeiro passo, porém, deve partir da pessoa que se sente vulnerável.
Não há uma legislação específica voltada para o combate ao “gaslighting”, mas tal comportamento pode ser enquadrado em variadas condutas tipificadas. A verdade é que o “gaslighting” é um mecanismo de abuso – e quem sofre com ele deve, além de procurar ajuda profissional, avaliar a tomada de medidas legais para que possa se proteger.
Lei Maria da Penha
O criminalista Douglas Antonioli, sócio do escritório Campos e Antonioli Advogados Associados, explica que a intenção daquele que pratica o “gaslighting” é “obter vantagem própria” – o que torna a definição do conceito ainda mais ampla, incluindo, por exemplo, o ato de enganar grosseiramente alguém.
“Isso significa que a conduta, para se configurar, requer a prática de algum tipo de manipulação dirigida a uma pessoa determinada a fim de obter vantagem para si próprio”, declarou.
Segundo ele, são várias as condutas criminais que caracterizam o “gaslighting”, desde que comprovada a intenção do autor de enganar a vítima em proveito próprio. “Pode ser enquadrado, por exemplo, a partir da Lei Maria da Penha. Em seu artigo 5º, essa lei trata da violência doméstica contra a mulher. Dispõe o artigo que haverá crime caso haja violência psicológica, não necessitando de violência física para a sua configuração.”
Calúnia e denunciação caluniosa
Outro enquadramento possível para o “gaslighting”, conforme Antonioli, é sob o crime de calúnia – “tipo que se configura quando o autor manipula a vítima e terceiros com o fim de que esta seja culpada de um ato que não cometeu”. A conduta está descrita no artigo 138 do Código Penal.
O advogado menciona a hipótese em que autoridade policial é induzida a apurar um fato baseado em uma mentira – relatada com o intuito de gerar uma investigação contra a vítima, acusada de um crime que nunca praticou.
“Esse manipulador poderá responder por calúnia, com pena de detenção de 6 meses a 2 anos, além de multa”, afirmou o criminalista. “E, indo além, quando alguém leva à autoridade policial um fato que sabe não ser verdadeiro, com o objetivo de provocar a abertura de uma investigação, essa pessoa poderá responder por denunciação caluniosa, nos termos do artigo 339 do Código Penal, cuja pena é de reclusão de 2 a 8 anos, além de multa”.
Constrangimento ilegal
Há também, na visão de Antonioli, a situação em que o autor manipula a vítima mediante violência ou grave ameaça – podendo, nesse caso, ocorrer a configuração dos crimes de constrangimento ilegal ou extorsão, consoante o descrito nos artigos 146 e 158 do Código Penal, respectivamente.
“Se o autor constrange a vítima, mediante grave ameaça, por exemplo, obrigando-a a entregar o celular para que ele tenha acesso às mensagens e informações armazenadas no aparelho, temos o crime de constrangimento ilegal”, exemplificou. “Se o autor vai além, obrigando a vítima a realizar uma transferência de recursos em seu benefício, aí temos caracterizada a extorsão.”
Estelionato
O advogado cita, ainda, a possibilidade de abrigo do conceito de “gaslighting” sob o crime de estelionato – artigo 171 do Código Penal –, que sucede quando o autor manipula a vítima para auferir algum ganho para si.
“Enquadra-se como estelionato, por exemplo, uma situação em que um homem engana uma mulher, com a qual estabeleceu um relacionamento, para conseguir usar o cartão de crédito dela ou transferir algum bem da vítima para o nome do autor”, enfatizou Antonioli.
“Gaslighting” não é doença
Diferentemente do que muitas pessoas pensam em um primeiro momento, “gaslighting” não é uma doença, embora, em dadas ocasiões, possa levar ao desenvolvimento de moléstias como a depressão. O motivo é que o “gaslighting”, constituindo-se como uma forma de abuso emocional, pode enfraquecer a autoestima da vítima, provocando sentimentos de insegurança, tristeza e abandono.
Como combater o “gaslighting”?
O primeiro passo é reconhecer os sinais de “gaslighting”. Quem se sente constantemente confuso e inseguro, com dificuldades para tomar decisões e questionando a própria lucidez e sanidade mental, deve pensar melhor sobre a questão.
É preciso, ainda, manter a confiança, com a cabeça erguida. Claro que enfrentar o “gaslighting” não é fácil, mas a vítima deve se lembrar das pessoas com quem pode contar nesse momento difícil, com a certeza de que não é responsável ou culpada pelas atitudes do manipulador.
Os sinais do “gaslighting”
O “gaslighting” se manifesta de várias maneiras. Algumas delas são:
. Negação: o manipulador sustenta jamais ter dito ou feito algo, mesmo que a vítima saiba e tenha provas do contrário.
. Menosprezo: o manipulador menospreza os sentimentos, pensamentos e falas da vítima.
. Isolamento: o manipulador dificulta o convívio da vítima com outras pessoas que poderiam ajudá-la a repor a verdade dos fatos.
. Ataque em grupo: o manipulador tenta convencer outras pessoas a duvidar da vítima, repetindo as mesmas estratégias de mentiras e distorções.
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